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Entrevista: Marcelo Paixão fala sobre racismo no Brasil

“Qualquer indicador que nós mobilizarmos no Brasil vai mostrar que existe um abismo entre brancos e negros”, dispara Marcelo Paixão, professor de Economia da UFRJ que, recentemente, trabalhou na edição do Relatório Anual de Desigualdade Racial. O documento aponta, por exemplo, uma taxa de mortalidade maternal 70% maior entre negras. Marcelo pondera que a discriminação racial naturaliza os papéis sociais que os grupos de aparência física distinta ocupam na sociedade. O acadêmico defende uma reeducação do olhar. “Nosso olhar foi treinado para fazer uma associação das linhas de cor e de classe e considerarmos esta associação a coisa mais normal do mundo. É estranho ver uma criança bem branquinha catando lixo. É estranho ver uma pessoa bem pretinha sendo dono de uma grande empresa”, diz. No Ano Internacional do Afrodescente, e a duas semanas do 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra – Marcelo Paixão concedeu a seguinte entrevista sobre racismo para o mandato.

Recentemente, a atriz Thalma de Freitas foi parada numa blitz junto com uma mulher loura e só ela foi detida e levada para a delegacia. O brasileiro diz que não é racista. Mas as atitudes dizem o contrário…

O brasileiro reconhece que existe uma discriminação na sociedade mas ele mesmo não se reconhece como parte desta sociedade que discrimina. Vários estúdios mostram um padrão de resposta do brasileiro médio em relação a esta questão. Você é racista? “Não. Você acha que há racismo na sociedade brasileira? Ele diz: “sim”. O fato é que as pessoas se dividem em diferentes aparências físicas, tonalidades de cor da pele. Características distinguíveis ao olhar são apropriadas pela sociedade que as classifica, criando escalas hierárquicas do pior para o melhor, o mais desejável e o menos desejável, o mais bonito e o menos bonito, e o mais suspeito e o menos suspeito, tal como ocorreu com a atriz. O que chama a atenção não é tanto o fato que a polícia tenha preterido num processo de revista social uma pessoa de pele mais clara em relação a uma pessoa de pele mais escura porque isso acontece realmente com muita frequência. O que chama atenção é, acontecendo com tanta frequência, ainda causar tanto espanto o que demonstra a força das ideologias. E, aí, voltando aos termos do velho Marx, o que é o ideologia? É uma falsa consciência da realidade social. Então, quando falamos que há um mito de democracia racial, nós podemos dizer que há uma falsa consciência que penetra a mentalidade média da população e que a faz ocultar aquilo que está muito visível. Basta ligar a televisão e a gente vê a posição que os atores negros ocupam, basta circular aqui (na UFRJ) ou pelos corredores das universidades mais prestigiadas onde está evidente que os processos de inserção na sociedade dialogam com a aparência física e a cor da pele das pessoas.

O secretário de segurança José Maria Beltrame ligou pessoalmente para a atriz para pedir desculpas e afastou os policiais. Se fosse uma pessoa comum, não teria acontecido. Até que ponto este fato ajuda a expor o racismo? Ou não traz, em si, nenhum efeito de conscientização ou mudança?

Que seja a mais excelsa atriz de uma grande empresa de telecomunição ao mais humilde catador de lixo, o silêncio não ajuda em nada no processo de formação da cidadania. Uma coisa é dizer que ela reclamou e, como atriz, teve maior poder de repercussão do ato que sofreu vis à vis a uma pessoa mais humilde. Infelizmente a sociedade brasileira obedece a padrões autoritários suficientes para dar, à pessoas de melhor condição econômica, politica ou de prestígio social, melhor capacidade de acesso ao poder judiciário e às autoridades, do que as pessoas mais humildes. Isso depõe contra a nossa sociedade que se diz democrática. Por outro lado, que isso não invalide o fato de que a atriz teve coragem de fazer a denúncia. Lido por outro ângulo, eu poderia pensar que, como atriz ela tem que preservar a imagem perante a opinião pública e, diante de uma situação desta natureza, vai silenciar para não ser lembrada por conta de situações mais constrangedoras. A sociedade brasileira não é reconhecida pela disposição de reclamar. Fazemos parte da sociedade do homem cordial que busca evitar a todo momento o conflito. Não costuma ser padrão brasileiro fazer uma reclamação de crime de racismo. Se ela reclamou, ela cumpre uma função pedagógica para aqueles que são mais humildes e devem reconhecer quais são seus direitos.

O salário médio pago aos negros é metade do pago aos brancos. Os negros detém 1% dos postos estratégicos. Os brancos têm o dobro de chance de manter a qualidade de vida e a chance de conseguirem um emprego é 30% maior. Que outros indicadores sociais atualizados pode informar sobre a população negra?

Qualquer indicador que nós mobilizarmos no Brasil vai mostrar que existe um abismo entre brancos e negros. Recentemente, editamos o Relatório Anual da Desigualdade no Brasil em que mostrávamos que havia diferença entre brancos e negros em relação ao acesso previdenciário, ao sistema de saúde e educacional e a probabilidade do negro ser assassinado. A taxa de mortalidade maternal das mulheres negras é 70% maior que das mulheres brancas, 40% das mulheres negras acima de 40 anos jamais haviam feito exame de mamografia, segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio do IBGE) de 2008. Em se tratando de mulheres negras, pouco mais da metade têm acesso a algum tipo cobetura previdênciária. O racismo tem características estruturais. Existe uma desigualdade profunda que se alimenta em grande medida da discriminação racial porque a discriminação racial naturaliza os papéis sociais que os grupos de aparência física distinta ocupam no interior da sociedade. Reduz a probabilidade de acesso de pessoas negras aos postos mais prestigiados. O racismo está arraigado e se retroalimenta com uma sociedade do tipo capitalista selvagem. A questão é por que uma sociedade que é tão capitalista selvagem seria harmoniosa e bondosa num plano das relações raciais onde nada nunca foi bondoso nesse país?

Morrem mais jovens negros que brancos…

…A árvore de causas está longe de ser uma coisa trivial. Porque certamente há o fato de que as famílias negras têm menores condições econômicas. Mas há o fato também da menor disposição da própria família ou do aparato escolar, por exemplo, de investir nestas pessoas. Por outro lado, o desalento no início da vida vai gerando menor de vontade de se manter nos estudos, leva as pessoas a se exporem à situações mais perigosas. Muitas vezes é o racismo presente que ocorre. A pessoa pode ser um estudioso, pode ser extremamente dedicada e ainda assim ser vitimada por uma bala que não é perdida, é direcionada. Lembro do episódio do dentista negro Flávio Santana que foi assassinado em São Paulo. Não podemos dizer que este assassinato foi derivado do fato de ter estudado pouco ou não estar inserido no mercado de trabalho. Foi assassinado porque a polícia olhou para uma pele escura num carro que não parecia coerente àquela cor de pele e lascou bala.

Como membro do Conselho Universitário da UFRJ, você apresentou a proposta de política de cotas raciais que não foi aprovada. Como você avalia a antipatia manifestada por muitos estudantes em relação às cotas raciais?

A má vontade acontece porque as pessoas pensam que se um ganha o outro perde. É bom que pensem sob o aspecto mais pedagógico porque isso significa que nós estamos numa sociedade extremamente elistista e excludente e quando você coloca em cena como as pessoas acessaram as oportunidades de mobilidade social, as pessoas consideram aquilo um direito adquirido e não veem que aquilo foi construído na base da negação do direito para tantas outras pessoas. Quando fiz o curso na UFRJ, lá pelos idos de 1988, a taxa de negros entre 18 e 24 anos de idade não chegava a 2%, isso 100 anos depois da Abolição. Hoje, não chega nem a 10%. Mais de 90% dos jovens negros estão fora da universidade. Eu me recuso a crer que estas pessoas são pouco inteligentes, pouco capazes. Acontece que vai se constituindo um sistema em que as limitações econômicas associadas às limitações que vão sendo construídas por conta da discriminação, que vão tolindo as expectativas de progresso na vida, atuam como um poderoso mecanismo produtor de assimetrias. As ações afirmativas incomodam porque tocam interesses, tocam privilégios. Considerarmos normal que passem para a faculdade federal e gratuita pessoas que tiveram acesso a um curso de reforço ou cursos de línguas é fazer pouco caso da inteligência coletiva. Na medida que tivermos uma universidade com maior diversidade, com pessoas de diferentes origens, isso contribuirá para o desenvolvimento econômico e tecnológico do país, com novas cabeças, novos profissionais. Custo a crer que hoje alguém possa ser prejudicado pelas ações afirmativas porque estamos vivendo um período de expansão de vagas na universidade. Dá para pensar num jogo em que todos saiam ganhando na medida em que o acesso à oportunidades de melhor posição na sociedade sejam mais democratizados.

Você acredita que possa haver mudança?

Temos que ser coerente com o que achamos justos. Enquanto for conselheiro universitário, tentarei apresentar propostas que envolvam não apenas cotas para os alunos pobres e escolas públicas, porque essa nós ganhamos. Eu votei a favor e acho importante. Mas a UFRJ já teria o amadurecimento necessário para também ter cotas expressamente raciais no seio destas cotas sociais. Temos bons motivos para desenvolver a hipótese que os negros, mesmo na condição da pobreza, se encontram duplamente prejudicados pela desigualdade social e pela desigualdade racial. Isso exigiria mecanismos que fizessem com que não apenas os pobres em geral, mas os negros pobres fossem estimulados a vir para as melhores universidades. Se por um lado as ações afirmativas na universidade causam tanta polêmica, o que dizer, por exemplo, do fato que o nosso egrégio Cartola só gravou seu primeiro disco nos anos 70. O fato é que o racismo vai eliminando não só apenas os talentos que poderiam estar na universidade. Ele vai eliminando talentos até aonde a população negra, não há dúvida, é quem tem a grande expertise. Até no plano da cultura popular incidem estes mecanismos que acabam fazendo com que mesmo ali, onde seria inquestionável que aquela população deveria ser a dona dos espaços, acabe a cena sendo uma espécie de empregado daquilo que, na verdade, são os próprios proprietários, e se veem alijados. Por que nunca tivemos uma especial pela vida do Lima Barreto, do Cruz e Souza ou da Carolina de Jesus na TV? Machado de Assis aparece na forma de um fantasma em propaganda institucional e o próprio estado brasileiro se dispõe aquele papel ridículo. Numa sociedade que não consegue retratar o Machado na cor de sua pele, não me estranha que seja difícil aceitar que não tenhamos negros médicos, negros engenheiros, negros advogados.

O que pode ser feito em termos de combate ao racismo?

Eu não me coloco no lugar de um ministro ou de um formulador de políticas públicas. A primeira coisa é treinar nosso olhar. Nosso olhar foi treinado para fazer uma associação das linhas de cor e de classe e considerarmos esta associação a coisa mais normal do mundo. É estranho ver uma criança bem branquinha catando lixo. É estranho ver uma pessoa bem pretinha sendo dona de uma grande empresa. Quem produz isso não é a íris, é a sociedade que instrui a forma de ver as coisas no país. Na segunda metade do século XX, o Brasil foi extremamente polarizado no plano ideológio, mas esquerda e direita concordavam que o Brasil era uma grande democracia racial. Acho que temos que produzir novos consensos, ter capacidade de entender as relações raciais operando nesta sociedade capitalista selvagem, ter noção de que discutir relações raciais é o mesmo que discutir relação de poder. Lembro da lei 10639 que estabelece o ensino de história africana e afrobrasileira nas escolas do ensino básico. É uma lei que pode criar novas culturas, novas mentalidades. A regularização das terras quilombolas é uma reivindicação muito importante. Também perceber que temos uma necessidade de produzir ações afirmativas nas universidades e que os partidos politicos tem que dar mais destaque (a questão da desigualdade racial) em suas agendas. Os partidos tem medo de perder eleitores e deixam este debate para um segundo momento. Os partidos deveriam ser mais ativos no processo de formação de lideranças afrodescendentes porque infelizmente o Congresso Nacional é formado, fundamentalmente, por homens brancos. Nao é possivel recriar uma agenda política sem considerar estas questões: os negros correspondem a 51% da população; o Brasil foi o ultimo país das Américas a acabar com a escravidão; somos a segunda população de afrodescendentes do mundo; e os indicadores sociais são francamente desfavoráveis.

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One Response to Entrevista: Marcelo Paixão fala sobre racismo no Brasil

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