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O estigma da tortura

Cid Benjamim

“O comportamento dos militantes — entre os quais me incluo — foi pouco humano. Houve nele algo de vendetta em relação ao tenente médico Amílcar Lobo.

O tenente médico Amílcar Lobo examinava os presos no DOI-Codi durante as sessões de tortura. Além disso, aplicava pentotal, o chamado soro da verdade, na veia dos interrogados mais recalcitrantes. Era uma peça daquela engrenagem sinistra. Como tal, deveria ter sido julgado e condenado.

O futuro da tortura está ligado ao futuro dos torturadores. A necessidade de punição de torturadores e mandantes não é principalmente um ajuste de contas com o passado. É uma exigência para que, no futuro, a praga da tortura seja extirpada.

Por isso, foi lamentável a decisão do STF, em abril de 2010, de estender a anistia a torturadores, estupradores e assassinos de presos, por considerar que eles praticaram “crimes conexos” aos delitos políticos.

Isto posto, quero dizer que compreendo a dor de Maria Helena Gomes de Souza, viúva de Lobo, que recentemente publicou um artigo neste espaço. Por isso, relevo absurdos que ela diz como, por exemplo, considerar que seu marido foi acusado “de forma vil”. Não foi.

Vou mais longe: acompanhei a situação do próprio Lobo, depois ele que deixou o Exército. Lobo, efetivamente, teve problemas de consciência pelo papel que cumpriu. E, ao contrário do outro tenente médico do DOI-Codi, Ricardo Agnese Fayad, hoje general, deu demonstrações de arrependimento.

Conheci Lobo no dia 21 de abril de 1970, quando fui preso ferido por dezenas de coronhadas de fuzil na cabeça, numa briga com agentes do DOI-Codi, e ele foi chamado para me dar pontos. Foram, ao todo, 17 pontos. Dados a frio, naturalmente. Nessa mesma noite, fui amarrado a uma cadeira ao lado do pau de arara e Lobo me aplicou pentotal.

Voltei a encontrá-lo nos dias seguintes, em novas sessões de tortura, quando ele me examinou e assegurou aos algozes que eu não estava a ponto de morrer e que as sevícias poderiam continuar.

Anos mais tarde, já depois da anistia, fui levado ao seu consultório, em Copacabana, pelo saudoso psicanalista Hélio Pellegrino e o advogado Modesto da Silveira, juntamente com outros ex-presos políticos. A visita rendeu uma reportagem na revista “Veja” (11/2/1981).

Lobo voltou à baila quando, na edição de 3/9/1986 da mesma “Veja”, fez denúncias sobre o que vira no DOI-Codi. Entre elas, uma importantíssima: tinha atendido o ex-deputado Rubens Paiva, um dos “desaparecidos”. Falou, também, pela primeira vez, na existência da Casa da Morte de Petrópolis, local clandestino usado para torturar e assassinar presos.

Nesse momento, já estava fora do Exército. Saíra em 1974.

Por sua participação no DOI-Codi, Lobo perdeu o registro profissional. Contribuí para isso quando, no dia 10 de agosto de 1987, prestei depoimento no Conselho Regional de Medicina (Cremerj), no processo em que ele era acusado de ter faltado com a ética médica.

Perseguido pelos militares, Lobo era alvo também da hostilidade de militantes da esquerda, que não perdoavam seu passado e o acusavam, com razão, de não ter contado tudo o que sabia.

Considero que o comportamento desses militantes — dentre os quais me incluo — foi pouco humano. Houve nele algo de vendetta. Lobo já era um farrapo e, ainda assim, foi acossado.

Embora ele tendo sido, sim, um torturador, teria sido preferível se tivéssemos compreendido sua angústia e, a seu lado, tratássemos de recuperar tudo o que ele sabia a respeito dos porões da repressão.”

*Cid Benjamin é jornalista

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