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Sobre o impacto dos megaeventos: do marketing à geopolítica

Rachel Bueno
Especial para o Jornal da Unicamp

Os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo da Fifa não beneficiam os moradores das cidades e países que os sediam, mas sim as grandes empresas que os patrocinam. A opinião, na contramão do senso comum, é da socióloga americana Kimberly Schimmel, convidada pelo Centro de Estudos Avançados (CEAv) da Unicamp a ministrar uma série de palestras na Universidade entre os dias 12 e 19 de setembro. Professora do programa de Sociologia do Esporte da Universidade Estadual de Kent, nos Estados Unidos, e vice-presidente da Associação Internacional de Sociologia do Esporte, Kimberly é referência internacional no estudo dos impactos sociais, políticos e econômicos dos megaeventos esportivos. Durante o período em que esteve na Unicamp, ela discutiu profundamente as consequências indesejáveis que a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 podem trazer para o Brasil. Falou também sobre outro assunto no qual é especialista – a participação da mulher no esporte. A visão crítica dos professores, pesquisadores e alunos da Universidade impressionou a socióloga: “Admiro a inteligência dos acadêmicos daqui”.

Simpática e comunicativa, Kimberly concedeu a entrevista a seguir na manhã do dia 15, antes de sair para uma caminhada pelo campus. O poder dos patrocinadores dos megaeventos esportivos, as preocupações dos sociólogos com relação à ida desses eventos para os países emergentes e o papel do esporte na quebra de preconceitos sociais, raciais e de gênero são os temas centrais da conversa. A socióloga também responde uma pergunta que costuma intrigar os brasileiros: por que o futebol feminino é muito mais desenvolvido nos Estados Unidos do que o masculino? Segundo ela, para os americanos, futebol é mesmo coisa de menina.

Jornal da Unicamp – A senhora disse em uma de suas palestras aqui na Unicamp que os Jogos Olímpicos começaram a ser patrocinados por grandes empresas em 1984. O que mudou após a chegada desses grandes patrocinadores?

Kimberly Schimmel – Um novo modelo de patrocínio surgiu em 1984 e muitas empresas começaram a investir em coisas que circundavam os Jogos. Tornou-se possível, por exemplo, assistir a uma competição comendo sanduíches do McDonald’s e bebendo cerveja da Budweiser. Desde então, os Jogos cresceram consideravelmente. Eles se tornaram estratégias de marketing para as empresas tanto quanto se tornaram eventos esportivos.

JU – Quando se pensa em esporte, costuma-se pensar também em saúde. No entanto, os grandes patrocinadores de eventos como os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo da Fifa são cadeias de fast-food e marcas de cerveja e refrigerante. Isso não é contraditório?

Kimberly Schimmel – A marca das Olimpíadas está atrelada a um número de patrocinadores, os chamados “Top Olympic Partners Sponsors”. Apenas essas empresas são autorizadas a fazer publicidade e vender seus produtos durante os Jogos Olímpicos. O McDonald’s é uma dessas empresas, a Coca-Cola é outra –- e os produtos que elas vendem não são necessariamente os mais saudáveis. Além disso, os atletas olímpicos não podem beber Coca-Cola porque o refrigerante contém cafeína, que é uma substância proibida. Ou seja, um dos patrocinadores dos Jogos é um produto que, se consumido, pode levar um atleta a ser expulso da competição.

Há mais uma contradição: como você disse, quando pensamos em esporte, pensamos também em saúde; contudo, os Jogos Olímpicos incentivam-nos a ficar sentados assistindo à televisão. Não há nenhuma comprovação acadêmica de que os Jogos tenham estimulado os cidadãos dos países que os receberam a ser mais ativos.

JU – De que forma os Jogos Olímpicos poderiam estimular as pessoas a praticar mais esporte?

Kimberly Schimmel – Eu gostaria de ser esperançosa, mas o modelo atual dos Jogos caracteriza-se pelo patrocínio das grandes empresas, pelo consumismo, pelo sentar e assistir. Precisaríamos propor um modelo totalmente novo. As empresas poderiam construir mais quadras esportivas, dar mais bolas para os estudantes, contratar mais professores de educação física – enfim, teria de ser algo completamente diferente do que existe hoje.

JU – Aqui no Brasil é proibido vender cerveja dentro dos estádios de futebol. Contudo, a venda será permitida durante a Copa de 2014 porque um dos patrocinadores é uma marca de cerveja. Como a senhora vê esse tipo de interferência nas leis do país?

Kimberly Schimmel – A Fifa não é a única organização com poder, de certo modo, para alterar as leis dos países que recebem a Copa do Mundo – os Jogos Olímpicos fazem a mesma coisa. A Constituição canadense, por exemplo, diz que não pode haver nenhum tipo de discriminação entre gêneros – tudo que é oferecido para os homens dever ser também oferecido para as mulheres. No entanto, algumas das competições do programa olímpico dos Jogos de Inverno são disputadas apenas por homens.

Quando os Jogos de Inverno foram para Vancouver, os canadenses consideraram que isso violava a Constituição nacional e acionaram o Comitê Olímpico. Como em outros casos em que as leis de um país foram alteradas para a realização de grandes eventos esportivos, a Justiça concluiu que o Canadá sabia quais eram as regras olímpicas quando se candidatou a receber os Jogos de Inverno de 2010, e essas regras se sobrepõem às leis nacionais. Aonde quer que os Jogos vão, são as regras olímpicas que contam, e não as leis do país.

JU – Vale a pena fazer esse tipo de concessão?

Kimberly Schimmel – É uma questão complicada. Nossas pesquisas têm mostrado que não há impacto econômico para os moradores ou para a cidade que recebe um evento como os Jogos Olímpicos. Os benefícios e lucros ficam com os patrocinadores e com as empresas que constroem empreendimentos próximos aos locais de competição. Para os moradores, geram-se alguns empregos, mas não são empregos que pagam altos salários.

A situação é um pouco diferente nos países em desenvolvimento porque as obras de infraestrutura – aeroportos, pontes, linhas de transporte – serão úteis para as cidades. Mas se pensarmos nos moradores de uma cidade como o Rio de Janeiro, a maioria não vai usar o aeroporto. Eles prefeririam ter casa própria, água encanada e saneamento básico a ter um aeroporto novo. Quando a Copa do Mundo foi para a África pela primeira vez, os sul-africanos construíram dez novos estádios de futebol, que agora estão vazios. A população dos subúrbios preferiria ter casas a ter estádios vazios.

JU – Quais são as outras grandes diferenças entre realizar os Jogos Olímpicos em um país desenvolvido, como a Inglaterra, e realizá-los no Brasil, onde a desigualdade social ainda é enorme?

Kimberly Schimmel – Esta é a pergunta que todos estão fazendo, e o Brasil estará sob os holofotes justamente por essa razão. Os Jogos de 2016 serão os primeiros, afora os de Sidnei, a vir para o Hemisfério Sul. Também serão os primeiros neste continente. Todo mundo está muito interessado no que vai acontecer aqui. Até agora os especialistas acadêmicos não estão muito otimistas e há grande preocupação com relação ao deslocamento de moradores e às desapropriações forçadas, que ocorreram em grande número em Pequim. Na verdade, há provas documentadas de que em todos os Jogos realizados nos últimos 20 anos houve deslocamento de populações e desapropriações forçadas. Organizações do mundo inteiro estão atentas a isso.

JU – O fato de o Brasil ser o país “da moda” contribuiu para a decisão de trazer a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos para cá?

Kimberly Schimmel – Absolutamente. Os Jogos Olímpicos provavelmente não teriam vindo para o Brasil se a economia do país não estivesse emergindo com tanta força. Podemos pensar nos grandes eventos esportivos como um tipo de capital empresarial que circula pelo mundo. Eles vão para as economias emergentes porque nelas há mais consumidores – mais pessoas que podem comprar um ingresso, que podem tornar-se fãs de futebol, que podem comprar uma camisa. É um modelo baseado no consumo, e não na saúde.

JU – Barcelona é sempre citada quando o assunto são os benefícios que os Jogos Olímpicos podem trazer para uma cidade. Por quê?

Kimberly Schimmel – Muitas pessoas dizem que Barcelona é o único exemplo de legado positivo dos Jogos, mas o que ocorreu lá não pode necessariamente ser repetido em outros lugares. Barcelona já era vista como um destino turístico, já tinha aquela arquitetura maravilhosa. Os Jogos só ajudaram a mostrar o que a cidade já tinha a oferecer. As razões do legado turístico positivo provavelmente têm mais a ver com a divulgação do que com a construção de Barcelona. Eles não se entusiasmaram erguendo estádios gigantescos.

JU – Evidentemente não podemos comparar o Rio de Janeiro com Barcelona, embora o Rio também seja um destino turístico.

Kimberly Schimmel – Não dá para comparar a economia das duas cidades, a estrutura, a imagem, a riqueza dos moradores, a desigualdade entre ricos e pobres. Simplesmente há muitas diferenças.

JU – O esporte é capaz de unir pessoas de origens sociais diferentes. No entanto, principalmente aqui no Brasil, os preços dos ingressos para os grandes eventos esportivos são acessíveis apenas a um pequeno grupo de pessoas. Isso também não é contraditório?

Kimberly Schimmel – Sim. Os estudos brasileiros sobre o impacto dos Jogos Pan-americanos de 2007, no Rio de Janeiro, corroboram algo que já vem sendo mostrado repetidamente em outros países: os grandes eventos esportivos são realizados dentro de uma “bolha turística” em que tudo é diferente do mundo exterior. Se você pode pagar a passagem para entrar na bolha, então você pode viver uma experiência diferente. Não é a experiência daquela cidade – é a experiência daquele evento.

Tememos que os governos do Hemisfério Sul, em grande parte, tracem uma linha divisória entre a realidade dos moradores e realidade dos turistas por meio da construção de muros, do deslocamento de populações, do uso de equipamento militar para garantir a segurança dos eventos esportivos. Todas essas coisas podem acontecer.

JU – Há uma preocupação no Brasil com relação ao uso de dinheiro público em obras para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A população tem como acompanhar os passos do governo com a finalidade de evitar gastos excessivos?

Kimberly Schimmel – É o que me pergunto também. Ainda não estudei profundamente o caso brasileiro, mas, pelo que entendo, o governo federal está investindo muito mais dinheiro nesses eventos do que os governos de outros países – na Inglaterra, por exemplo, foi criada uma loteria para financiar as Olimpíadas de Londres. Não creio que todos aqui saibam quais serão as consequências desses investimentos federais no longo prazo. Mesmo nas economias emergentes, os recursos não são ilimitados. Quando se investe em um estádio, deixa-se de investir em uma escola ou hospital. Não é possível investir em tudo. Isso é uma preocupação para muitas pessoas.

JU – As redes sociais podem exercer um papel importante no acompanhamento dos gastos públicos?

Kimberly Schimmel – Creio que você está falando de um movimento de resistência a essas coisas que são tão injustas, como o uso indevido de dinheiro público. Vários grupos ao redor do mundo estão tentando associar-se e o Facebook é uma possibilidade. Há também o videoativismo. A organização Witness está treinando pessoas para sair e documentar com câmeras de vídeo o que está acontecendo nas favelas e em outros bairros pobres do Rio – os moradores estão tentando permanecer em suas casas, mas os governos estão fazendo-os sair. Em razão das tecnologias existentes atualmente, essas coisas agora podem ser vistas por numerosos olhos. Estamos em uma nova era, com novas possibilidades de resistência. Nesse sentido, o Rio será um caso de teste.

JU – O futebol é a única esperança para muitos garotos brasileiros que sonham ter uma vida melhor. Nos Estados Unidos o esporte também é um caminho para a mudança social?

Kimberly Schimmel – Como nosso sistema esportivo é estreitamente conectado às universidades, o fato de alguém, menino ou menina, ser muito bom em um esporte pode ajudá-lo a ter acesso à educação de nível superior. As universidades custam muito caro nos Estados Unidos; porém, se você for um bom atleta, você pode estudar de graça. Isso oferece oportunidades reais a muitas pessoas, mas, obviamente, não resolve o problema da pobreza. Também há muita pobreza nos Estados Unidos, embora esta não chegue aos extremos que existem aqui.

JU – Mas há uma diferença importante entre os Estados Unidos e o Brasil. Lá, quem é bom em um esporte consegue ir para a universidade; aqui, quem joga futebol bem consegue ganhar muito dinheiro, mas não recebe nenhuma educação.

Kimberly Schimmel – Não recebe nada. Se a pessoa se machucar, se sua carreira não for muito longa, ela não terá nada a que recorrer. É um sistema que produz um futebol de altíssimo nível, pois apenas um pequeno número de pessoas consegue chegar ao topo, mas que não educa ninguém. Não é um sistema valioso para a sociedade – é valioso para o futebol. O futebol nos dá alegria, mas não muda realidades.

JU – O que ocorre em países como a França, em que a população torce por uma seleção de futebol repleta de jogadores de origem africana, mas protesta com veemência contra a presença de imigrantes na sociedade?

Kimberly Schimmel – As duas coisas acontecem ao mesmo tempo. Se a seleção obtém bons resultados, as pessoas ignoram a questão da etnia e consideram que todos são franceses. Mas no instante em que um jogador para de jogar bem, ele deixa de ser francês e passa a ser argelino, imigrante. Isso ocorre no mundo inteiro. O esporte pode reforçar nossos preconceitos ou levar-nos a pensar de forma diferente. É como a sociologia encara o esporte.

JU – De que forma o esporte pode ajudar a quebrar preconceitos?

Kimberly Schimmel – Há profundos preconceitos raciais nos Estados Unidos e nossa história é de segregação no esporte. Brancos e negros estavam separados no esporte como estavam no sistema educacional, nas Forças Armadas, nos espaços sociais. O esporte, contudo, foi o primeiro a promover a integração racial. Isso começou com o beisebol. Os jogadores negros desafiaram o resto da América branca a vê-los de maneira diferente. Estamos falando dos anos 1940, quando as pessoas diziam que alguém de outra raça não seria capaz de portar-se adequadamente. Por meio do esporte, as pessoas foram forçadas a perceber que isso talvez não fosse verdade.

O mesmo ocorreu com relação às mulheres. Havia o estereótipo de que elas não eram capazes ou fortes o suficiente para praticar esportes. Gradualmente, isso foi mudando. O Comitê Olímpico permitiu que as mulheres corressem a maratona e elas não morreram – elas se saíram bem.

JU – E de que forma o esporte pode ajudar a reforçar preconceitos?

Kimberly Schimmel – Quando um atleta negro comete um erro bobo, as pessoas preconceituosas relacionam o erro com a raça. O preconceito é muito profundo em várias sociedades, mas podemos ter esperança de que haverá uma mudança social no longo prazo. Nos Estados Unidos, o esporte já está completamente integrado, embora isso não signifique que as divisões raciais e o preconceito tenham desaparecido.

JU – Como a participação das mulheres no esporte evoluiu ao longo das últimas décadas?

Kimberly Schimmel – Evoluiu de maneira diferente em diferentes países. No cenário internacional, como nas Olimpíadas, o número de esportes disputados por homens ainda é maior, mas há cada vez mais oportunidades para as mulheres. Cada país, porém, tem suas próprias lutas. A luta das mulheres muçulmanas é diferente da das mulheres canadenses protestantes.

JU – Por que nos Estados Unidos o futebol feminino é muito mais popular e bem-sucedido do que o masculino?

Kimberly Schimmel – Somos diferentes do resto do mundo. O futebol é o esporte mais praticado pelas crianças – meninos e meninas – nos Estados Unidos. No entanto, os meninos que demonstram ter aptidão para o futebol americano mudam para essa modalidade quando atingem certa idade. Os Estados Unidos não veem o futebol como um esporte muito masculino. Isso ocorre porque temos o futebol americano – um esporte hipermasculinizado, com atletas enormes e musculosos. Quando um jogador de futebol americano é atingido e cai, ele não finge que está machucado. Para os nossos olhos, isso é ridículo.

Muitos meninos permaneceriam no futebol, mas acabam saindo porque querem parecer mais masculinos – futebol, para nós, é coisa de menina. Temos uma longa história de rejeição ao futebol, que começou com o fato de este ser o esporte dos ingleses. Nós transformamos outro esporte inglês, o rugby, no nosso futebol. Quando isso aconteceu, o futebol convencional perdeu espaço. Queremos que nossa seleção masculina seja boa, mas quando ela não se sai bem, não nos importamos – afinal, é só futebol. O futebol masculino ainda está muito atrás do feminino nos Estados Unidos. Não é à toa que um dos atletas brasileiros mais populares nos Estados Unidos é a Marta, e não o Ronaldinho. Todo mundo a conhece.

JU – A Copa do Mundo de 1994 não ajudou a mudar a imagem do futebol masculino nos Estados Unidos?

Kimberly Schimmel – Um pouco, mas muitas pessoas viram a Copa como um torneio estrangeiro. O que realmente teve um grande impacto nos Estados Unidos foi a Copa do Mundo feminina de 1999. O futebol feminino explodiu depois disso – em parte porque nós ganhamos, e ganhamos de forma emocionante, com um pênalti no final.

JU – O que a senhora pensa a respeito do uso do esporte como símbolo de poder?

Kimberly Schimmel – Vincular o esporte a sistemas políticos é tão antigo quanto o próprio esporte internacional. Desde que as pessoas começaram a jogar por uma bandeira, com o nome de seu país nas costas, o esporte pode ser manipulado para atender a interesses políticos. Para ser honesta, é exatamente isso que o Brasil está fazendo agora. O Brasil está usando o esporte para anunciar sua chegada no cenário internacional. O Brasil está anunciando para o mundo: agora nós temos importância, prestem atenção em nós. A imagem do Brasil que será projetada pela Copa do Mundo e pelos Jogos Olímpicos será de segurança, de felicidade – tudo que torne o país atraente para quem quer investir aqui.

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