Império do Senso Comum

Artigo de Chico Alencar

O senso comum, nesta encruzilhada de nossa História, foi erigido como medida inquestionável de uma série de decisões que afetam a vida nacional. Na Câmara dos Deputados, onda conservadora afoga todos na superficialidade da percepção dos fenômenos sociais. Tempos medíocres.

Assim, a violência estrutural e a sensação de insegurança passam a ter como ‘solução’ o encarceramento de jovens em regime prisional para adultos – de onde advêm 70% de reincidência criminal – e a flexibilização do Estatuto do Desarmamento, na perigosa linha do ‘cada cidadão uma arma’. A perspectiva do desemprego é ‘enfrentada’ com a precarização geral e quase irrestrita das terceirizações. A necessidade da produção de alimentos e commodities pelo agronegócio ameaça ainda mais os direitos dos povos nativos, desconhecendo-se que cada km² de terra indígena emite 25% menos CO2 que outras terras agricultáveis na própria Amazônia. À saudável diversidade da convivência amorosa, com novas formas de coabitação solidária, é oposto o modelo único da família tradicional, como se fora dela não existisse salvação. Aos escândalos que se sucedem, a serem enfrentados com investigação rigorosa e transparência, é preceituado o remédio do moralismo individualista, como se tudo fosse uma questão de transferir virtudes privadas – véu de hipocrisia? – para o âmbito da instância pública.

Também no plano da política institucional o método arcaico impera: no lugar de uma “Reforma Política”, são propostas medidas tópicas… contra a política. O povo a repudia? Pois reduzamos suas oportunidades de debate e escolha, com pleitos apenas quinquenais. A corrupção atinge todas as grandes siglas, revelando a perda total de fronteiras entre o público e o privado? Que se protele ao máximo a decisão do STF quanto à inconstitucionalidade da doação empresarial para partidos e campanhas. A ideia de partido está degradada? A reação foi tentar se garantir na Constituição o triunfo do indivíduo, da personalidade, com o já sepultado ‘distritão’. Há pequenos partidos, alguns ‘de aluguel’, que se vendem? Que se imponham cláusulas para impedir seu direito de crescer, preservando os grandes que tantas vezes os compram e não raro são acometidos de nanismo moral.

As pseudosoluções galopantes da ‘pequena política’, os arreganhos triunfantes de uma maioria reacionária são expressões típicas da crise do nosso modelo de modernização conservadora, do nosso aparato político reativo à democratização de base, direta e participativa, do esgotamento do arsenal de conciliações entre contrários que estão, cada vez mais, assemelhados. Antonio Gramsci (1891-1937), em seus “Cadernos de Cárcere”, denominou “interregno” essa época de incertezas que anuncia, entre sombras, um fim de ciclo. Trata-se do intervalo histórico em que o velho ainda não desapareceu totalmente e o novo ainda não se firmou: o ‘não mais’ está casado com o ‘ainda não’.

A sofreguidão regressista, com mais espaço nessa quadra sem hegemonia clara, tenta cristalizar suas posições. Esses períodos trevosos, diz Gramsci, são propícios ao aparecimento de “sintomas mórbidos, fenômenos estranhos, criaturas monstruosas”. Nossa cena política contemporânea oferece vários personagens com essas características nefastas.

Ainda bem que a História é um contínuo de transformações. O desafio da hora presente, frente ao império do senso comum e seus monarcas do atraso, é ressignificar o senso crítico que conduz ao bom senso republicano da igualdade, da democracia e da ética social.

*Chico Alencar, deputado federal, líder da bancada do PSOL na Câmara

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